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O CARNAVAL

 

Nalgumas aldeias do concelho existe ainda o costume antiquíssimo de os rapazes, depois da ceia, percorrerem as ruas tocando chocalhos, fazendo um barulho infernal, que só pode comparar-se às latadas de Coimbra, aumentado ainda com uma vozearia medonha, terrível.

 

Durante os quinze dias que antecedem o dia de entrudo todos primam em enganar ou fazer qualquer pirraça aos outros.

 

Viuvo que casar antes do entrudo é fatalmente ridicularizado; homem ou mulher, a quem sucede qualquer caso digno de riso, lá verá no entrudo o caso mais ridicularizado ainda com a respectiva paródia.

A graça do povo é posta em evidência e nem sempre de modo inofensivo, porque ás vezes se cometem verdadeiras diabruras, não raro expiadas na cadeia, sobretudo por causa do costume de chorar o entrudo, buzinar ou dizer pulhas, pondo à boca um funil ou tubo de folha.

Chorar o entrudo é ridicularizar o indivíduo a quem se dirigem os jocosos moços, um dos quais em voz alta pergunta, por exemplo:

-Oh! Manuel Joaquim, não te envergonhas de... É verdade que...? O grupo responde pelo alvejado, dando grandes gargalhadas e fugindo logo, a chorar o entrudo a outro indivíduo, numa algazarra ensurdecedora, com uma rapidez incrível:

- É verdade, é verdade!

 

Antes do entrudo todos têm as portas bem fechadas, porque, uns, por brincadeira, outros muito a sério e confiados na impunidade, tiram chouriças e tudo o que aparece, convidando depois os roubados para uma patuscada.

Na minha terra, era eu criança, o velho João Domingues estava à lareira com a família ceando despreocupadamente.

 

O fumo ia fugindo pela janelinha que deitava para casa do Domingos Ramos, quase rente ao telhado deste, perto da qual estava secando um grande bucho de porco, recheado de bons bocados: língua, beiço, costeletas, lombo e outras partes saborosas.

 

Sabendo isto os rapazes, um deles sobe ao telhado, mete a mão pela janelita, traz o bucho e desaparece, ouvindo a filha, a Catarina, gritar: «Olhem que levam o bucho...»

 

Mas este não mais apareceu e assim ficaria uma família sem ter bucho no Entrudo, tendo ainda ouvido a respectiva choradela, se o saboroso petisco não fosse parar a casa de pessoas amigas que a convidaram para o comer.

Em regra são as pessoas de mais confiança e amigas da família quem faz estas diabruras, que só depois se averiguam e são retribuídas no carnaval seguinte.

FONTE:

TERRAS DE RIBA-CÔA. MEMÓRIAS SOBRE O CONCELHO DO SABUGAL

Joaquim Manuel Correia - Lisboa 1946

Aldeia de Rendo., criado com Wix.com

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