NATAL. A CONSOADA . A MISSA DO GALO
Não há noite tão notável em todo o ano como a noite do Natal, em que as famílias se visitam e oferecem filhoses e outras guloseimas.
Nessa noite há ainda o costume da consoada, que consiste numa ceia abundante, muito melhor que as outras do resto do ano.
Todos jejuam, grandes e pequenos, diz o chefe da família, porque:
Quem não jejua nos Santos e no Natal
Ou é burro ou animal.
Desse modo jantam ao meio-dia e ceiam pouco depois do pôr do sol, geralmente na cozinha, ao calor da fogueira, que aquece a família toda, ao mesmo tempo que vai secando a latada de chouriças, paios, morcelas e farinheiras, numa grande porção de varas, balouçando-se como arrecadas sob o caniço cheio de castanhas.
Sobre o mourão de granito assenta o pichel de estanho e, cravado na cinza da pilheira, está guardado o espeto.
Algumas panelas de ferro fervem, cheias de bacalhau e batatas, ou acabando o caldo verde, ao mesmo tempo que, segura na trempe, se vê a sertã, onde lindas trutas vão corando e, numa panela maior, também de ferro, nada já o bucho que há-de ser comido por parentes e amigos no dia seguinte- dia do Natal.
A dona da casa desvia as brasas para a trempe, com a ferra ou com a tenaz da cozinha, deitando-as na braseira e o marido, no assador, mexe as castanhas, que dão estoiros atroadores.
Sentados em toscos bancos ou mezentes de três pés, cercam todos a mesa, coberta de alva toalha caseira.
Não tarda que, reunidos, comam o caldo verde com tosca colher ou cocharra de pau em não menos tosca tigela de barro.
Depois vem o bacalhau, em certas casas a pescada e truta, arroz e, no fim, o queijo fresco, manteiguento.
Em geral bebem todos, pelo mesmo jarro ou pichei, o saborosíssimo vinho.
A consoada faz-se em todas as casas, com a diferença de, numas, ser com mais luxo e abundância que noutras.
Umas, têm apenas o bacalhau e o caldo, ovos, arroz e almôndegas de bacalhau; outros têm pescada, trutas, enguias e diversas iguarias, excepto carne, que fica para o dia seguinte.
Acabada a consoada, o chefe da família dá o sinal para rezarem e então, todos de pé, excepto ele e a mulher e pessoas idosas, oram por presentes e ausentes, vivos e defuntos, pelos que andam sobre as águas do mar, para que Deus os traga a porto de salvação, por amigos e inimigos, etc.
Os novos pedem a bênção e beijam a mão aos pais.
Seguem-se depois narrativas curiosas, contos de lobos e histórias do tempo dos Franceses.
Assim se passa a noite até se ouvir o repique dos sinos e acender-se a fogueira.
A FOGUEIRA DO NATAL
Em muitos concelhos da Beira, e principalmente no do Sabugal, há o costume de os moços fazerem uma grande pilha de lenha e troncos inteiros de carvalhos e giestas em frente da igreja paroquial, pedindo-os aos vizinhos e tirando o que podem dos pátios, ou como aqui se chama, dos currais, onde todos os moradores têm provisão de lenha.
Arvores inteiras, umas vezes dadas, outras furtadas aos particulares, durante as noites que precedem o dia de Natal, (porque mesmo os mais escrupulosos não hesitam em auxiliar o furto para a fogueira do Menino Deus) e que por vezes são pagas na cadeia, são amontoadas em enorme pilha, de mistura com vides e giestas para auxiliarem a combustão.
Mal soa a meia-noite é lançado o fogo àquela porção de lenha, que não tarda em arder, elevando aos ares grandes labaredas, de muitos metros de altura.
É curioso o espectáculo, que se torna mais interessante ainda com os prolongados repiques dos sinos nos campanários das aldeias.
Em volta do vastíssimo braseiro, os moços gritam ou cantam, uns batem com varapaus nas tocas e trepolas em chamas, outros assam chouriças e morcelas e todos bebem vinho à farta.
Ouvem-se pífanos e violas e pancadas nos madeiros para atear a combustão e, da fogueira, miríades de ardentes faúlhas se elevam pelos ares, semelhando ouro em pó, crepitando sem cessar no grande escuro da noite.
Às janelas vêm todos os vizinhos, que nessa noite não se deitam, esperando a meia-noite na cozinha, contando histórias e, quando de casa não podem observar a fogueira, vão contemplá-la depois a caminho da igreja, onde vai começar a missa do galo.
Um murmúrio característico se nota pelas ruas da aldeia, passos ligeiros e sons graves de tamancos ferrados atordoam os vizinhos, que se aproximam da igreja, em breve cheia de povo.
A fogueira fica abandonada e lança para o interior da igreja ondas de calor e para o ar lufadas enormes de fumo, envolto em centelhas faiscantes.
Os homens enchem a metade da frente da igreja, embrulhados em capotes de saragoça ou de burel e as mulheres a metade restante, bem agasalhadas em mantilhas de forte pano preto e mantéus azuis de maranha. (Desapareceram quase completamente na maior parte das freguesias as grossas cintas de pano, ainda muito usadas em Espanha).
Chega o padre ao altar e não tarda que homens e mulheres alternadamente entoem em coro o hino:
Bem-dito e louvado seja
O menino Deus, nascido,
Mai Ia virgem que o trôgue
Nove mêses escondido. . .
Neste hino ao Menino Deus Nascido, sobressaem notáveis e deliciosas vozes, que majestosamente executam a velha canção consagrada, enquanto o pároco oferece, junto dum altar, armado em presépio, a pequenina imagem de Jesus aos lábios do povo reverente.
Todos, especialmente as crianças, depõem numa bandeja dinheiro ou frutos, nozes, laranjas e maçãs, ou ovos.
Quando o pároco pronuncia o - Ite, missa est - termina o canto sagrado e todos retiram e se acercam da fogueira, onde se aquecem e donde levam restos de trepólas, ferradas ou braseiras cheias de brasas, as quais hão-de preservar do raio, bem como, as cinzas, das feiticeiras e bruxas.
Por vezes o frio é terrível, estando as ruas cheias de neve, os telhados com carapetos e os caminhos, onde corre água, cheios de caramelo, como vidraças, cuja grossura resiste ao peso dos carros e que originam muitas quedas.
Ao chegarem a casa as crianças vão observar os caprichosos ramos das vidraças, os quais desaparecem num instante com o calor da respiração, deixando-as inconsoláveis.
Entretanto na cozinha está o bucho cosido, feitas as papas de milho com o caldo dele e as batatas enxugando já numa grande travessa e uma grande e negra morcela, luzidia de gordura, está espetada no espeto, que a dona da casa vai virando.
Tudo se prepara agora para o almoço, onde comparecem parentes e amigos.
Assim passou a noite do Natal, a missa do galo e a enorme fogueira e vai começar, na manhã seguinte, o almoço genuinamente português.
FONTE:
TERRAS DE RIBA-CÔA. MEMÓRIAS SOBRE O CONCELHO DO SABUGAL
Joaquim Manuel Correia - Lisboa 1946