ROMARIAS - ROMAGENS
De antiquíssima data vem o costume das romarias, que cada vez são mais concorridas e interessantes, perpetuando-se assim a piedade religiosa doutras eras, quase sempre originada pelos casos de peste ou para afugentar monstros que alteravam a imaginação dos antigos povos, corno sucedia a respeito da romaria da Sacaparte, ou para agradecer à Divindade a cura dum doente querido, como dizem a respeito da romaria da Senhora dos Milagres, perto do Seixo do Côa.
Em todas ou quase todas as freguesias deste concelho, em certos dias do ano, vão os vizinhos, pelo menos uma pessoa de cada casa, em procissão, indo à frente o pároco e alguns homens com opas, insígnias e cruz alçada, visitando todas as ermidas da povoação e algumas doutras freguesias, indo mesmo ao local onde existem ruínas doutras e onde nem apare- cem já vestígios delas.
CARIA ATALAIA
Ao cabeço de Caria Atalaia iam pelo menos sete freguesias com o respectivo pároco, opas de várias cores, guiões, bandeiras e estandartes, no domingo de Pascoela, acompanhados do pároco, de sobrepeliz, levando alguns homens insígnias e a cruz.
Por motivos de ordem pública foi proibido juntarem-se nesse dia as romagens das freguesias de Rendo, Ruivós, Vale das Éguas, Nave e Vila Boa, indo apenas procissionalmente a gente da Ruvina com o respectivo pároco.
Actualmente as maiores romarias do concelho são:
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a da Saca parte,
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Senhora do Monte,
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Senhora dos Milagres,
devendo, porém, mencionar- se ai
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da Senhora da Torre,
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a de Roque Amador,
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do Espírito Santo,
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Senhora do Bom Sucesso,
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Senhora dos Prazeres, do Sabugal Velho,
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e da Senhora das Preces
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e finalmente a romaria da Senhora da Graça, perto da Vila do Sabugal.
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De cada uma falaremos ao ocupar-nos das respectivas freguesias.
Descrever uma é descrevê-las todas, excepto as da Sacaparte e Senhora da Graça, geralmente mais grandiosas. Quatro romarias têm lugar na Sacaparte.
Nenhuma, porém, se pode equiparar à notável romaria que desde tempos remotos se faz em Vale de Lobo, a três léguas da vila do Sabugal, em cuja ermida, edificada na serra de Opa, se venera a imagem que lhe dá o nome.
ROMARIA DA SENHORA DA POVOA
Embora estranha ao concelho do Sabugal devemos escrever algumas linhas a respeito desta romaria, que é para os povos da Beira Baixa o que a romaria da Senhora da Nazaré, tão notável no distrito de Leiria, é para os povos da Estremadura.
A menos dum quilómetro da povoação de Vale de Lobo, concelho de Penamacor, e no sopé da serra de Opa, que confina com o concelho do Sabugal, alveja a ermida da Senhora da Póvoa, cuja fama é inexcedível.
Seria mister muito espaço para descrever esta romaria, porque fornece assunto para grande volume.
Ela constituía belo campo de observação a quem quisesse estudar os costumes do povo, durante os três dias em que dura a festa, desde a noite do arraial, em que há variadíssimo fogo preso, até ao desfazer dessa grande feira.
Não faltam companhias teatrais, de cavalinhos, inúmeros cafés e restaurantes, hospedarias, roletas, rifas, barracões com santos, medalhas, flores, bentinhos, tendeiros e quinquilharias; arruamentos de cestas com frutas, doces e, em volta, centos de carros de bois, cobertos com lençóis e colchas de várias cores. Relincham centos de cavalos e zurram muitos mais jumentos em todo vasto acampamento, no vastíssimo terreiro e nas abas da serra de Opa.
É indescritível a vozearia, o movimento do povo e o som de variadíssimos instrumentos, violas, guitarras, violões, pífanos, flautas, tambores, realejos, harmónios, gaitas de foles, berimbaus e inúmeros adufes, à mistura com os cantos de milhares de pessoas de centenas de terras, entoando a música vulgaríssima da Senhora da Póvoa.
Ranchos curiosos de aldeias distantes, de espanholas alegres, salerosas e charros, de cintos de sola, botões grandes de latão nos coletes, calções e polainas doutras eras e alparcatas rudimentares, tocando pandeiretas e castanholas; homens de chapéus braguezes, de grandes abas e borlas de seda ou penas de pavão, com varapaus de carvalho; moços tocando banza, raparigas alegres, vermelhas como romãs, de lenços multicores e trajos mui garridos, tocando em grandes adufes e cantando com entusiasmo, deixando ver alvíssimos dentes ao entoarem a Senhora da Póvoa; pastores com safões de pele de carneiro merino, tocando pífano habilmente, acotovelam centos de ranchos; e as inúmeras folias, compostas de diferentes figuras - gaiteiro, tambor, cantadores, rei e pagem - todos em grupo, tocando e cantando, que o povo, extasiado, ouve com verdadeira devoção e amor pela relíquia de antigas eras.
Descrever cada rancho, cada folia e tudo o que se passa é impossível.
Nas barracas dos teatros representam-se farsas divertidas, comédias frescas e, nos circos, palhaços e mulheres de fatos de malha provocam incessantes gargalhadas ao povo embasbacado, ao mesmo tempo que as acres censuras das pessoas honestas.
Filarmónicas desafinadas percorrem o arraial, ouvem-se clarins e cornetas e passam patrulhas de cavalaria. O administrador do concelho obriga os homens a deixarem os paus em depósito, para evitar desordens, medida tão inocente como inútil.
Na igreja, muitos eclesiásticos celebram missas, e, mais ainda, esperam que os convidem a celebrá-las; há homens encarregados de alugar mortalhas para todas as idades e outros de receber esmolas, ofertas, tranças, figuras de cera, cabeças, pernas, olhos e quantas partes do corpo foram atacadas de moléstias e salvas por milagre da Senhora da Póvoa, ficando depois tudo em perpétua exposição na igreja e dependências, assim como quadros a óleo, a lápis, à pena, etc.
Começa a procissão, desfraldam-se bandeiras, guiões, estandartes de várias cores e destaca-se no seu rico andor dourado a imagem milagrosa da Virgem, seguem-se muitas cruzes e insígnias, homens de opas verdes ou encarnadas, brancas ou vermelhas, incorporam-se irmandades e segue a força militar e muitos eclesiásticos cantando; e o pároco, sob o pálio rico, entoa o cântico sagrado.
Debaixo dos andares vão-se revezando tristes criaturas anémicas, franzinas, há pouco salvas das garras da morte; assim a procissão dá-nos a ideia dum cemitério em que os mortos ressurgissem com suas alvas mortalhas, parecendo tudo um sonho imenso de fantasmas brancos, uns, caminhando em pé, outros, de joelhos, alguns, amparados por homens ou mulheres, muitos caindo impotentes a meio da jornada, sem poderem cumprir o voto que fizeram num momento de angustia, quase de alucinação para salvarem um parente, uma pessoa querida.
Dura a procissão algumas horas, porque o andor da Senhora é disputado, cobrindo-se a esmola dada pelos que o entregam num incessante entusiasmo e devoção, indo os amortalhados e todos os que nela se incorporam mui vagarosamente, caindo alguns por terra, sem darem acordo de si, sendo logo transportados para algum restaurante ou hospedaria.
Assistimos em 27 de Maio de 1890 a uma dessas procissões.
O dia estava tormentoso, o trovão ribombava e a chuva caía torrencialmente, transformando o largo em horroroso lamaceiro.
A multidão sofria resignadamente, a procissão seguia a custo e no vastíssimo acampamento eram aos milhares os guarda-chuvas, mantas e capotes das pessoas que não cabiam nas hospedarias, tabernas, tendas e botequins e das inúmeras que enchiam o templo.
Na procissão iam muitos homens de joelhos, alguns de costas!
Belas, elegantes raparigas, assim iam todas vestidas de branco (amortalhadas), tendo também o rosto velado por véus brancos, amparadas pelas mães, completamente vestidas de luto.
Uma delas ia já extenuada, porque, antes das sete voltas que dera ao templo, tinha vindo descalça desde a terra, distante algumas léguas, e outra, velhinha, de olhar insinuante e feições tristes, segurava a custo um grande guarda-chuva, ao mesmo tempo que outra mulher mais robusta auxiliava a desventurada, que com os joelhos se arrastava, deixando atrás de si um fundo sulco na lama luzidia!
Que aflição não teria sido a da infeliz criatura, ao fazer essa promessa, que podia originar-lhe a morte!
E, como esta, viam-se muitas, e não houve quem protestasse, se opusesse, em nome da razão e da humanidade, a tão cruéis suplícios e a procissão lá ia continuando, como um pesadelo, vagarosamente.
As filarmónicas e girândolas de foguetes, atroavam os ares, as folias entoavam músicas especiais, e o trovão continuava ribombando dos lados da Meimoa, aumentando assim a confusão.
FONTE:
TERRAS DE RIBA-CÔA. MEMÓRIAS SOBRE O CONCELHO DO SABUGAL
Joaquim Manuel Correia - Lisboa 1946