AS JANEIRAS DOS RAPAZES
Como vimos, nas diferentes épocas do ano o povo entoa diversas músicas, adequadas aos vários serviços, festas religiosas e romarias.
Uma dessas músicas é a que se canta em todo o mês de Janeiro, pouco depois do pôr do sol.
Muitos grupos de rapazes e raparigas, compostos de pessoas de diferentes classes, cantam à porta das famílias mais abastadas. É um modo de darem as boas festas ou de angariar presentes para depois fazerem um grande jantar.
Há quase sempre três espécies de grupos: o das pessoas amigas e mais ricas da povoação; que por modo dão as boas festas às pessoas das suas relações; o dos rapazes e raparigas, para se divertirem; e o da gente pobre, que por meio pede esmola.
No primeiro de Janeiro e em dia dos Reis é quando há maior entusiasmo, havendo grupos bem ensaiados, tocando violas, guitarras e flautas e, outros, apenas com pífanos.
Aos rapazes, é costume dar castanhas ou maçãs e aos outros grupos também chouriças, farinheiras e morcelas.
Depois de terem feito boa colheita em diferentes noites, fazem os rapazes e raparigas magustos e, depois, dançam animadamente, ao ar livre, quando o tempo assim o permite, e, à noite, comem as chouriças e morcelas.
Os magustos são feitos no campo, nos pinhais ou terras em que haja muita giesta, sendo sempre animado género de diversão, em que se come muita castanha e bebe muito vinho.
É antiquíssimo o uso de pedir as janeiras, tendo origem nas festas de Jano (1), representando assim a reminiscência de um costume romano.
A fórmula singela e mais rude é usada pelas crianças:
«Janeira pedimos
«Saco traguêmos,
«Dê-no-la de breve,
«Breve abalaremos»
Mas a musa popular há muito inspirou esta gente e disso vamos dar ideia, copiando algumas quadras, que há longos anos correm:
Estas casas são mum altas,
Forradinhas de alecrim,
Viva quem nelas habita
Que é o senhor Joaquim.
O final do segundo verso rima sempre com o último, isto é, com a última silaba do quarto, que é o nome do dono da casa ou da pessoa de
família, pois dirigem sempre amabilidades aos pais, filhos e outras pessoas que na mesma casa habitem, incluindo as criadas:
Estas casas são mum altas
Forradinhas de papel,
Viva quem nelas habita
Que é o senhor Manuel.
Viva lá, senhô Maria,
Raminho de salsa crua,
Debaixo da sua cama
Nasce o sol e põe-se a lua.
Inda agora aqui cheguei
Já pus o meu pé na escada,
Logo o meu coração disse:
- Aqui mora gente honrada!
Deus lhe dê lá boas noites,
Noites de muita alegria,
Que lhas manda o rei da glória,
Filho da Virgem Maria.
Levante-se lá, senhora,
Desse banco de cortiça,
Venha-nos dar a janeira:
Ou morcela ou chouriça.
Levante-se lá, senhora,
Desse banquinho de prata,
Venha-nos dar a janeira,
Que está um frio que mata.
Levante-se lá, senhora,
Desse banquinho dourado,
Mande-nos dar a janeira,
Pela criada ou criado.
A silva que nasce em casa
Vai beber à cantareira,
Levante-se lá, senhora,
Venha-nos dar a janeira.
A senhora é que nem sempre está disposta para mais cantilenas e ou resmunga ou despede o rancho, quando não finge que não ouve dando lugar a que lhe respondam:
Estas casas são mum altas
Forradinhas de ferrugem:
As pessoas que Iá moram
Andam cheias de rabugem.
Ou o presunto é grosso
E a faca não quer cortar
Ou a dona desta casa
Não tem nada que nos dar.
ou então, já irritados:
Este barbas de farelo
Não tem nada que nos dar
Saco traguêmos
Saco levâmos,
Dê-nos a janeira
Que já nos vâmos!
Mas quantas vezes sucede que, depois de despedir ou ralhar ao rancho, a dona da casa ouve estrídula gargalhada ou a conhecida frase: - Surra, velha! que se deixou empulhar!
Então entra todo o rancho, de gente amiga, disfarçada, comendo e bebendo alegremente.
AS JANEIRAS DOS SANTOS
Enquanto os rapazes e raparigas se divertem pedindo a janeira de porta em porta, a dona de casa vai pensar também nos santos de maior devoção para os quais encheu uma comprida chouriça ou guardou um chispe e às vezes a cabeça do porco e outras também um nédio leitão.
Os mordomos vão recebendo todos os domingos pingues esmolas, oferecidas pelas vizinhas aos santos, um leitão para que vinguem os outros da ninhada, um pernil, chispes, orelhas, partes de que o porco padecia, e se curou por milagre e chouriças porque o cevado chegou a chambaril, sem doença alguma, sem negar a comida, como ali se diz.
Deste modo os mordomos juntam sempre muitas chouriças e várias partes do porco, que depois são vendidas à porta da igreja, num domingo, à saída da missa conventual.
As ofertas aos santos não têm lugar só nesta época, pois que em todo o ano se realizam. O povo, de tudo o que colhe e cria, oferece alguma cousa, ou seja trigo, centeio, milho, batatas, castanhas, ovos, frangos ou leitões, que depois são vendidos a quem mais der. As chouriças rendem às vezes muito dinheiro, porque há sempre quem as arremate bem.
O Santo António é que geralmente tem melhor janeira, para o que muito concorrem todos, mesmo os pastores, a quem ele restituiu ao redil a ovelha perdida, tendo a certeza de que foi ele porque quando rezou a oração não se enganou, o que é sinal evidente e certo de que devia aparecer e realmente apareceu.
Por isso, de quando em quando, à porta da Igreja das povoações, aparecem à venda, em leilão, leitões, frangos, cordeiros, ovos, chouriças, morcelas, chispes, etc.
(1) - Pinheiro Chagas: História de Portugal, 3.ª edição, pág. 587 e seguintes.
FONTE:
TERRAS DE RIBA-CÔA. MEMÓRIAS SOBRE O CONCELHO DO SABUGAL
Joaquim Manuel Correia - Lisboa 1946